Rui Grilo
Na primeira vez que entrei em uma fábrica, tinha uns treze anos e fiquei com muito medo. Eram máquinas altas como postes, faziam muito barulho e soltavam muito vapor como se fossem um dragão. O tecido de algodão cru passava por um corredor de fogo dentro da máquina para queimar os fiapos de algodão.
Mais tarde, fui trabalhar lá. Nunca me saiu da lembrança o Arnaldo, um rapaz que era meu vizinho. Morreu porque se descuidou e o cinto do macacão se prendeu na correia que ligava as rodas e os cilindros e ele foi levado para cima e arremessado do alto da máquina.
Trabalhava junto com outros jovens, na faixa dos 14 a 18 anos, fazendo macinhos de fibra de coco que eram pregados em grandes escovas cilíndricas de madeira, de 90 cm a 2,40 m. Até hoje tenho marcas no dedo em que prendia o gancho de metal que fechávamos com o alicate para prender os fios de fibra de coco. Depois de fechados, pareciam laços ou borboletas. Esses macinhos eram fixados com pinos de metal sobre os quais se batia com martelo para que se prendessem no fundo de buracos dos cilindros de madeira. Essas escovas rodavam jogando as tintas do interior das canaletas para cilindros onde estavam impressas as matrizes dos desenhos.
Cada cilindro imprimia apenas uma cor até completar todas as cores do desenho. Muitos jovens perdiam os dedos porque, na hora de cortar a fibra de coco, tinham que segurá-la formando um arco. Se esquecessem o dedo para fora do arco, na direção da lâmina, quando ela descia, cortava a fibra e o dedo.
Mas a máquina mais perigosa era a cardadeira, na qual o algodão passava entre dois cilindros cheios de dentes como se fossem um grande pente que desfiava as mantas de algodão. Se o operário se distraísse e o dedo era puxado para dentro do pente, as mãos, os braços e o corpo todo ia sendo triturado pela máquina.
Era uma das maiores indústrias de tecido do Brasil. Tinha uma grande vila, uma bela igreja e até um hospital. Mas também tinha uma cadeia para onde os jagunços e capatazes levavam as lideranças sindicais. Uma das poucas vozes que se levantava contra essas arbitrariedades era um padre, tio do atual Ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos e que era diretor da Faculdade de Filosofia.
Quando havia exportação de tecidos, às vezes os operários tinham que trabalhar três dias sem parar porque o navio estava ancorado em Santos e tinha data certa para partir. Aos operários eram distribuídos comprimidos para não dormirem e aguentarem essa jornada.
Naquela época não havia o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS – e depois de dez anos os operários adquiriam estabilidade e, se fossem despedidos tinham direito à uma indenização maior. Para sonegar esse direito, uma estratégia muitas vezes usada era colocar algum objeto nos bolsos ou mochilas e, ao passarem no portão, eram revistados. O operário pego com o objeto era demitido por justa causa, perdendo o direito à indenização.
Todas as firmas tinham um departamento jurídico cuja maior atuação era oferecer acordos em que os empregados sempre levavam a pior. E quase sempre assinavam acordo porque o dinheiro oferecido era necessário à sobrevivência. Se recorressem à justiça, ia demorar tanto que não teriam como sobreviver.
Os operários eram proibidos de se sindicalizarem. Alguns, como no meu caso, se arriscavam e pagavam o sindicato por fora. Mas, se algum membro da administração do sindicato denunciasse, o operário era demitido. Não só ele mas toda a sua família e ia para a lista negra. Ficava quase impossível arrumar emprego em outra indústria da cidade.
Muitos dos direitos que temos hoje foram conseguidos com muita luta e os sindicatos foram peças fundamentais. Até hoje as firmas não perdoam e fazem tudo para corroer a representatividade dos sindicatos. Isolados, os trabalhadores não tem como medir forças com os empresários. São submetidos a se contentarem com as sobras do banquete. Por isso é que as empresas sempre buscam negociar sem a intervenção dos sindicatos ou do governo.
Ora, só há democracia verdadeira quando o direito de todos é respeitado e as soluções são livremente pactuadas em situações de igualdade. Para isso, muitas vezes é necessária, além do sindicato, a mediação de órgãos do governo para limitar o poder econômico,que explora os mais fracos, aqueles que só tem o seu corpo como força de trabalho para garantir a subsistência.
Os próprios patrões agem em grupo, se articulam em poderosas instituições para negociarem em posição de força e obterem privilégios, muitas vezes usando os trabalhadores como massa de manobra. Quando se sentem fragilizados recorrem à mediação do governo.
O neoliberalismo prega o estado mínimo que se regula pelas regras do mercado. Mas isso só vale quando permite a superexploração da mão de obra e o aumento dos lucros. O momento atual deixou o rei nu porque quando as grandes firmas começam a ter prejuízo recorrem ao governo para salvá-las.
Rui Grilo
ragrilo@terra.com.br
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