sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

LGBTT: A nova luta civil não é racial, é sexual

Os ativistas homossexuais enfrentam a batalha pelo casamento gay como a que libertou os afro-americanos. A vitória, creem, será inevitável

David Alandete, El País, tradução de Moisés Sbardelotto.

Os ativistas dos direitos dos gays nos EUA enfrentam agora a batalha com a mesma convicção, solidão política e sentido histórico que a luta pela igualdade dos afro-americanos no século XX. A derrota no referendo da Califórnia só foi um tropeço, acreditam, em um caminho que será duro, mas de triunfo inevitável. As novas iniciativas estão na rua, mas sobretudo nos tribunais. Ao confiam em conquistar a igualdade.

Molly McKay, de 38 anos, se casou quatro vezes com sua namorada de toda a vida, Davina Kotulski. Primeiro foi em 1998, em uma pequena cerimônia privada que não teve nenhum valor legal. Dois anos depois, se uniu ao programa de uniões de fato do Estado da Califórnia. No começo de 2004, voltaram a se casar em San Francisco, quando o prefeito da cidade, Gavin Newsom, decidiu unir cerca de quatro mil casais, considerando que o direito ao casamento era fundamental para todas as pessoas. Em menos de um mês, o Tribunal Supremo da Califórnia invalidou todos aqueles casamentos. Finalmente, no último mês de setembro, ela e sua namorada foram o 17ª casal que se casou na prefeitura de San Francisco, depois que o mesmo Tribunal que tirou o direito ao casamento em 2004 o devolvesse em maio de 2008.

Quatro cerimônias depois, Molly e Davina estão à beira do precipício legal, de onde contemplam a possibilidade de uma nova licença de casamento esvaziada de todo o conteúdo. Vivem juntas há 13 anos. “Depois de tanto tempo, é doloroso pensar que haja quem queira que você seja uma cidadã de segunda”, diz com resignação. “Se o Tribunal Supremo chegar a decidir que as nossas licenças são inválidas, será muito duro admitir que haja gente que tenha decidido que você não tem a liberdade de decidir quem é o seu companheiro. Davina é a pessoa mais importante da minha vida. Ambas construímos uma vida juntas. E só queremos ter os mesmos direitos e obrigações que o resto dos casais”.

Nessa mesma situação, estão 18 mil casais homossexuais que, no último mês de maio, receberam a benção de que o Tribunal Supremo da Califórnia decidiu que a Constituição desse Estado deve garantir o direito ao casamento como um direito constitucional que não pode ser negado às pessoas do mesmo sexo. Um conjunto de grupos conservadores decidiu que o que a justiça havia decidido fosse ratificado pelo povo soberano. No mesmo dia das eleições em que a Califórnia elegeu Obama como presidente dos EUA, seus cidadãos decidiram que os homossexuais não têm o direito de se casar.

Esses 18 mil casais ficaram em um limbo legal. Sua esperança está agora em convencer a sociedade de que a sua causa não é estranha, mas algo muito semelhante ao que a população afro-americana dos EUA viveu há pouco mais de quatro décadas, quando não era permitido que os negros se casassem com brancos. Naquele momento como agora, os partidos também não apoiavam a causa dos ativistas pela igualdade.

Hoje, cidadãos como Molly e Davina acreditam que o caminho que conduz ao casamento homossexual é inexorável, que será percorrido nas próximas décadas com a guia e o apoio de casos que se converteram em um exemplo modelar para os ativistas gays do mundo, como o da Espanha.

“A Espanha é uma fonte de inspiração”, comenta Molly. “Os espanhóis demonstraram ser um povo avançado em seu tempo, em que foi aberto um debate sadio e racional. Aí ficou claro que a igualdade entre as famílias é possível, que a diversidade é algo bom”. Em 2005, na Espanha, o presidente José Luis Rodríguez Zapatero ordenou uma modificação do Código Civil para permitir que fossem atribuídos ao casamento “os mesmos requisitos e efeitos quando ambos contraentes sejam do mesmo sexo ou de sexos diferentes”. Cerca de 66% da população acolheu positivamente a modificação, segundo dados do CIS.

Na votação da Califórnia do dia 04 de novembro, o resultado foi mais ajustado. Cerca de 52% dos californianos votou a favor da chamada Proposition 8, que emenda a Constituição californiana para acrescentar uma sucinta frase: “Somente o casamento entre um homem e uma mulher será válido e reconhecido na Califórnia”. Cerca de 47% votaram contra. A diferença foi de 600 mil votos, 5%.

O problema para os ativistas homossexuais não é tanto esses 5%, mas sim a composição demográfica que se aferrou a uma ideia tradicional e conservadora de família. Segundo as pesquisas de boca de urna realizadas pela rede de televisão CNN, 70% dos afro-americanos e 53% dos latinos votaram a favor da Proposition 8. “Não há dúvida de que houve uma maioria nesses dois grupos étnicos que votou pela paralisação do casamento gay”, explica Brian Powell, sociólogo na Universidade de Indiana. A outra esperança está no fator idade. Os eleitores mais jovens e com educação universitária votaram inequivocamente a favor do casamento gay. Cerca de 66% dos eleitores de 18 a 29 anos votou contra a proposição, assim como 64% das pessoas com título universitário de pós-graduação.

“Acima de tudo, trata-se da fé. O fato de que haja uma grande participação nos serviços religiosos entre hispânicos e afro-americanos teve muito a ver no sentido do seu voto”, acrescenta o sociólogo. “Em uma série de entrevistas que realizamos na Universidade de Indiana, descobrimos que muitas dessas pessoas citam passagens textuais da Bíblia como argumentos contra o casamento gay, sobretudo na comunidade negra”.

A comunidade afro-americana é fervorosamente religiosa. Cerca de 57% dos cidadãos afro-americanos na Califórnia vão à igreja ao menos uma vez por semana. A média de participação regular nos serviços religiosos no Estado é de 42%, segundo dados de um estudo publicado recentemente pela Universidade de Nova Iorque.

“Diz na Bíblia. Só há um modelo de família, uma forma de sustentar a sociedade. E esta é a união entre um homem e uma mulher. Não existem mais opções”, diz Charlene Cothran, uma mulher para a qual a Bíblia é a fonte de toda a sabedoria. Segundo sua própria opinião, essa mulher viveu em pecado durante 29 anos e descobriu a fé em 2006. Em sua vida anterior, Cothran foi uma das mais proeminente ativistas homossexuais dos EUA. Chegou a dirigir uma revista para lésbicas afro-americanas, chamada Venus.

Agora, denomina-se a si mesma como uma “ex-gay”. Sua revista passou a ser “um instrumento para difundir a palavra do evangelho”, segundo ela mesma diz. É uma voz para “pedir perdão aos pais de jovens homossexuais, pedir-lhes perdão pelo comportamento de seus filhos”, segundo explicou. “O casamento gay é uma ofensiva. É uma arma de guerra dos gays para enfraquecer as bases da sociedade, para acabar com os valores tradicionais”. Esse é precisamente o ponto de vista de muitos afro-americanos religiosos que votaram no último dia 04 de novembro a favor da Proposition 8. Que o matrimônio homossexual não é um direito civil, porque a homossexualidade não é biológica, mas uma opção e um estilo de vida. Que ser gay é uma escolha. Que existem mais opções. E que deixar que o casamento homossexual sobrevivesse na Califórnia teria sido o começo do fim.

Isso é o que pensa o influente apóstolo e tele-evangelista Frederick K. C. Price, que lidera uma comunidade de 22 mil fiéis em Los Angeles. Junto com outros 30 pastores, decidiu pedir a um grupo de crianças que não fossem à aula em um dia do mês de outubro e lhes enviou para pedir aos cidadãos afro-americanos que votassem a favor da Proposition 8, “porque aprová-la seria colocar em risco o futuro dessas mesmas crianças”, segundo disse naquele mesmo dia.

“Esse assunto criou uma situação paradoxal”, diz o professor Powell, da Universidade de Indiana. “O debate sobre o casamento homossexual é muito semelhante ao que ocorreu nos anos 70 sobre o casamento inter-racial. É estranho pensar que os eleitores negros que apoiaram a mencionada proposição estejam agora do lado daquela gente que, anos atrás, teriam se oposto ao casamento entre pessoas de cor diferente”. Até 1967, o Tribunal Supremo dos EUA não declarou inconstitucionais todas as leis que proibiam os brancos a se casar com negros.

Entre os estranhos companheiros de cama que a Proposition 8 criou, estão os afro-americanos e os membros da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, também conhecida como a Igreja Mórmon, um grupo religioso que proibiu a entrada à sua igreja aos negros até o ano 1978. Segundo os ensinamentos do seu primeiro profeta e fundador, Joseph Smith, o fato de ter pele negra era sintoma de uma maldição de Deus. Agora, os mórmons encontraram no voto afro-americano um valioso e paradoxal aliado.

Muito do dinheiro arrecadado para financiar a campanha a favor da Proposition 8 – no total, 36 milhões de dólares – veio de doadores mórmons. E nesse momento, há uma auditoria em marcha para determinar se houve fraude, financiamento irregular. E desde o dia das eleições, há concentrações de protesto às portas das igrejas mórmons. Alguns ativistas gays pediram que se vote a legalidade do casamento entre os mórmons. Em uma casa de San Francisco, sobre um morro, visível desde boa parte da cidade, apareceu um cartaz gigante, escrito em letras de cor fúcsia, em que se lia: “Fodam-se os mórmons”.

Além disso, está o boicote. Nadine Hansen, fiscal retirada de Utah e mãe de quatro filhos, decidiu tirar do armário os mórmons que doaram dinheiro para proibir o casamento gay. Criou uma página na Internet (mormonsfor8.com), onde são indicados os nomes e sobrenomes. “Os mórmons são 2% da população da Califórnia, umas 770 mil pessoas”, explica Hansen. “E só eles são mais da metade dos doadores que deram mil dólares ou mais a essa causa”. Sua página se converteu em uma verdadeira penitência para o restaurante El Coyote, de Los Angeles. A filha do dono desse estabelecimento, Marjorie Christoffersen, mórmon, deu 100 dólares para a campanha a favor da Proposition 8. E o restaurante sofreu manifestações e um boicote que fez as vendas caírem em 30%.

Outros mórmons chegaram a perder seus empregos, como Richard Raddon, até há pouco tempo presidente do Festival de Cinema de Los Angeles, e Scott Eckern, diretor artístico do Teatro Musical da Califórnia, em Sacramento. Os dois se viram obrigados a deixar seus postos de trabalho frente à pressão da comunidade artística.

“É claro que os ativistas homossexuais não vão abandonar essa luta até que não exista a igualdade total”, explica Hansen, que, além disso, é mórmon. Para ela, sua campanha particular tem um sentido transcendental. “Há pesquisas recentes que demonstram que existem pessoas que votaram a favor da Proposition 8 e agora se arrependem do seu voto. Nós, norte-americanos, somos lentos na hora de alcançar a igualdade. Mas cedo ou tarde acabamos por nos dar conta de que é o certo”. No fim das contas, em um país católico como a Espanha o casamento gay foi aprovado. “E o céu não caiu sobre os espanhóis, não é?”, acrescenta.

O traçado desse chamado caminho para a igualdade depende, em grande parte, da decisão a que o Tribunal Supremo do Estado chegue no próximo mês de maio. No dia após as eleições, diversos cidadãos e instituições, como as prefeituras de San Francisco e Los Angeles, levaram a Proposition 8 aos tribunais.

Consideravam que proibir o casamento homossexual não era uma mera “emenda” à Constituição, mas uma “revisão” em toda a regra do texto legal. E, legalmente, para realizar uma “revisão” desse tipo são necessários, pelo menos, os votos de dois terços do Congresso do Estado. “Acreditamos que é necessário que o Supremo decida sobre esse assunto, porque é uma mudança radical e sem precedentes em nossa Carta Magna”, diz Elizabeth Gill, advogada da Associação de Direitos Civis da América, que tomou parte em uma das demandas. “A Proposition 8 impediria os tribunais de exercer sua obrigação de proteger os direitos das minorias. Para isso, não basta uma maioria simples de 52% dos votos”.

Se o Supremo da Califórnia decidir que a Proposition 8 é inconstitucional, a Califórnia se manterá como o terceiro Estado em que o casamento homossexual é legal, junto com Massachusetts e Connecticut. No entanto, 42 Estados definem o casamento como a união exclusiva entre um homem e uma mulher, e cerca de 30 deles, por emenda constitucional.

E ainda existe um teto de cristal que deve ser quebrado. “Apesar de que a Califórnia poderia manter o casamento gay, dependendo da decisão do Supremo, em nível federal muitos dos direitos ficam invalidados. O governo federal dos EUA não reconhece o casamento homossexual, por isso os contraentes homossexuais não podem se beneficiar de vantagens concretas em âmbitos como o de conseguir vistos ou pagar impostos”, explica Eugene Volokh, professor de direito da Universidade da Califórnia.

Pode ser que, com os anos, surjam um Congresso e um presidente que possam alcançar um acordo para reconhecer, em escala federal, os benefícios que alguns Estados outorgam aos casais gays. Por agora, isso parece pouco plausível, já que Barack Obama, como George Bush, se mostrou contrário à legalização do casamento gay. Não se deve esquecer que o Partido Democrata também não esteve na batalha dos negros até que John Kennedy (1961-1963) e sobretudo Lyndon Johnson (1963-1969) lhes apoiaram, o que teve um custo eleitoral enorme no sul dos EUA.

Por isso, parece mais provável que, no fim, será o Tribunal Supremo dos EUA o que irá reconhecer como um direito legítimo, como ocorreu com a luta pelos direitos civis e o aborto. Em todo caso, o caminho para o casamento gay passa, primeiro, pelas bases. E, na Califórnia, os ativistas estão mais dispostos do que nunca a seguir lutando.

IHU/Unisinos – El País (Esp) – 15/1/2009 – www.unisinos.br/_ihu

Fonte: http://www.pt.org.br/portalpt/index.php?option=com_content&task=view&id=73058&Itemid=236

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