sábado, 30 de agosto de 2008

Palmas para a revista Veja!


José Luís Feijó Nunes

Há muito não leio o que é publicado pela revista Veja. É opção. A revista Veja, de grande circulação nacional, não é a única e, portanto, tenho outras fontes de informação e leitura.

No entanto, recebi há alguns dias um e-mail de Becky, uma colega de curso, que expressou sua indignação em relação à matéria publicada pela revista, em sua edição de número 2.074, de 20 de agosto de 2008. Em seguida, como é comum nas relações via Internet, recebi outros e-mails sobre a mesma questão, quase todos expressando a mesma indignação, principalmente pela maneira como a reportagem se posiciona sobre o professor Paulo Freire.

Li os e-mails com atenção, mas não escrevi nada. Naquele momento, considerei que esta era uma indignação dos meus colegas que cursam o Mestrado ou o Doutorado em um Programa de Pós-Graduação, que, com mais de 30 anos de existência, procura formar educadores e pesquisadores para intervir e melhorar a qualidade da educação oferecida em nosso país.

Porém, percebi que o mesmo debate, um pouco diferente na abordagem, também aconteceu entre os professores e demais educadores com os quais trabalho. E, como este debate está dentro da escola pública, resolvi também emitir por escrito a minha opinião.

Em primeiro lugar, diferentemente de meus colegas, quero parabenizar a revista e sua editoria. Por incrível que pareça, a matéria de Veja é uma enorme demonstração das idéias e ensinamentos não só do professor Paulo Freire e de outros grandes professores com os quais tenho o privilégio de conviver dentro do Programa de Educação: Currículo da PUC-SP, como é uma notável demonstração de que o Currículo é um poderoso instrumento de luta política e, portanto, de luta por uma nova sociedade.

Em suas páginas reservadas para tratar da questão da educação, nesta edição a editoria de Veja está particularmente preocupada com aquilo que nós, professores, estamos ensinando a nossos alunos. Partindo da análise dos baixos rendimentos obtidos pelos estudantes brasileiros nas diferentes avaliações de diversos componentes curriculares e demonstrando uma preocupação com esta qualidade, a revista revela que, na verdade, está desesperada com aquilo que os professores esquerdistas andam dizendo às `coitadinhas´ de nossas criancinhas.

Em minha opinião, o aspecto central da matéria é que o professor Paulo Freire não precisa de defesa (ainda mais das acusações de Veja). Sua própria vida e sua conduta já são sua defesa. Ao contrário, o que a revista faz é um grande elogio ao nosso maior e mais importante educador.

Uma maneira de interpretar a acusação a Paulo Freire, de que nós, professores, idolatramos "personagens arcanos sem contribuição efetiva à civilização ocidental, como o educador Paulo Freire, autor de um método de doutrinação esquerdista disfarçado de alfabetização", é expressarmos nosso repúdio a tal afirmação. Outra maneira é expressarmos nossa satisfação ao vermos constatado nas páginas de Veja que o professor Paulo Freire considerava a educação uma forma de libertação, que o Currículo não é neutro, não é um caleidoscópio que assume várias formas e cores conforme o gosto do freguês, mas sim um instrumento de luta e que está diretamente relacionado a qual sociedade queremos construir e qual ser humano queremos formar. Veja nos dá a oportunidade de afirmar também que a imprensa, tal qual o currículo, não é neutra. A seleção, a abordagem e a interpretação dos fatos têm conteúdo próprio.

É verdade o que diz Veja: Paulo Freire alfabetizou os camponeses pobres e, com a alfabetização, deu a eles a condição de enxergarem o seu lugar no mundo e poderem agir como seres conscientes sobre este mundo.

Segundo Veja, o ensino está ideologizado e nós, educadores, vivemos no passado.

Quem bom. Foi exatamente isso que aprendi e continuo aprendendo na vida, no trabalho, nas escolas e com meus professores no programa de Currículo. Aprendemos que não há educação sem assumir posturas, sem dizer qual é o seu lugar no mundo e para que e para quem você educa. Ou, como menciona Leonardo Boff, em seu livro A águia e a galinha: uma metáfora da condição humana: "A cabeça pensa a partir de onde os pés pisam. Para compreender, é essencial conhecer o lugar social de quem olha. Vale dizer: como alguém vive; com quem vive; que experiências tem; em que trabalha; que desejos alimenta; como assume os dramas da vida e da morte e que esperanças o animam. Isso faz da compreensão sempre uma interpretação."

Quanto ao passado, bem... neste caso, basta citar um poeta como fez Veja. Não de maneira manipulada e distorcida, como fez a revista, com Drummond. Cito Cazuza, que diz: "Eu vejo o futuro repetir o passado e vejo um museu de grandes novidades. O tempo não pára, não pára". Neste caso, eu é que acuso Veja de querer educar para o passado, ou para uma novidade passageira, um "futuro" que vai virar "passado" rapidamente, sem futuro algum para o bem-estar da humanidade e para a felicidade das futuras gerações.

Aliás, a respeito de Drummond, valem mais algumas palavras. Uma leitura completa de "Procura da Poesia" mostra que a interpretação de Veja é uma completa fraude. Na mesma poesia, lemos este trecho:

"Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável."

Sobre as demais acusações de Veja aos professores brasileiros e à idolatria a Che Guevara, ao socialismo, à sociedade justa e igualitária etc. etc., é uma questão de opinião. Veja considera, por exemplo, que o revolucionário Che Guevara poderia continuar estudando medicina e descobrir uma vacina contra a malária e, assim, teria ajudado os humilhados. Eu considero também a possibilidade de Che ter ajudado a fazer a Revolução Cubana (às vésperas de seus 50 anos) e, com isso, ter contribuído para que um país das dimensões do Brasil e outros de economias poderosas comprem vacinas produzidas pela minúscula e pobre ilha caribenha, e com estas vacinas salvem milhares de crianças - as pobres e humilhadas e também as filhas da classe média e alta, talvez até os filhos e netos de amigos da família de... Veja.

Quanto às outras acusações de Veja aos livros didáticos e aos professores, bem... isso merece um artigo específico, no qual poderíamos contestar item por item.

Ainda sobre Paulo Freire, uma última apreciação. Congratulo novamente Veja por separar Paulo Freire das constantes ações para a destruição da educação brasileira levada a cabo pelos neoliberais de plantão nos governos (federal, estaduais ou municipais) nos últimos anos.

No final de 2004, no Programa de Educação: Currículo, sob orientação do professor Antonio Chizzotti, defendi uma dissertação de mestrado, cujo título foi "A reforma da educação pública paulista dos anos 90: o discurso oficial e a ação prática do governo estadual para implementar a política do Banco Mundial", que procurou, muito limitadamente, mostrar que as medidas neoliberais de ataque à educação pública estavam recheadas das falas e conceitos de Paulo Freire, Freinet, Vigotski, Dewey e outros "arcanos" mundiais da educação, mas que estes nada têm a ver com tais reformas. Foram apenas utilizados para tais medidas.

Então, é importante que Veja nos ajude a esclarecer a todos os professores, aos alunos e às suas famílias: Paulo Freire não é sinônimo da `qualidade´ da educação que temos hoje, das condições de trabalho ou dos currículos implementados no país. Ao contrário, é o oposto disso. Voltando ao poeta Drummond, vemos que a revista e os neoliberais de plantão utilizam essa prática corriqueiramente: apropriam-se de autores e do melhor que a sociedade produz para defender os seus próprios interesses. Não nos deixemos enganar.

Enfim, o que tanto aterroriza Veja? Não se trata de uma preocupação com o conjunto da educação brasileira, como a reportagem tenta mostrar. A pesquisa encomendada por Veja foi feita apenas entre escolas particulares. O que aterroriza Veja é a influência "esquerdista" sobre os filhos da classe média. Se Paulo Freire influencia, ainda hoje, os pobres do campo e da cidade, a revista se conforma. Até porque Veja continua a esperar que estes pobres nunca entrem no ensino superior e adquiram condições de influenciar a sociedade. Já os filhos da classe média... que horror! Estão recebendo ensinamentos de Paulo Freire! E vão para a universidade! Aí já é demais!

Por fim, chamar Paulo Freire de arcano é muito interessante. Primeiro, porque a revista Nova Escola, editada também pelo grupo Abril, de Veja, tem uma edição de grandes pensadores da educação que influenciaram o mundo inteiro e, entre eles, podemos ver ninguém menos do que... Paulo Freire, ao lado de... Marx. Então, podemos deduzir que se trata do imprescindível e velho dinheiro, ou do capitalismo selvagem dos Titãs, também mencionado por Veja. Ou, em outras palavras: para vender... fazemos qualquer negócio.

Sobre ser arcano, devo dizer que, por mais materialistas, esquerdistas, comunistas e outros istas que sejamos, sempre há um Q de magia quando alguém pode ser tão humilde e ao mesmo tempo tão majestoso e, para desespero de Veja, tão influente como Paulo Freire foi e ainda é.

Assim, palmas para Veja! E, para nós... palmas também. Afinal de contas, o que seria de Veja se não fossemos nós a fornecer-lhe pautas interessantes.

Um abraço a todos.


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